“Devo duas vezes minha vida ao São Carlos”

A maior emoção, sem dúvidas, foi aquela primeira vez no Hospital São Carlos com o Letti e o Ferrary

Quando abri os olhos pela primeira vez vi as paredes daquele casarão. Era dezembro de 1947 e o berçário recém-inaugurado reluzia de novo. Foi o primeiro ambiente que conheci em minha vida. Naquela época era comum as parteiras realizarem os partos em casa. Eu fui privilegiado. Nasci no Hospital São Carlos.
Aquele casarão no fim da Rua da República, em frente ao Grupo Escolar, serviu para mim de inspiração para o resto da vida. Muitas vezes estive lá como coroinha do monsenhor Tiago Bombardelli, para extrema-unção de pacientes. Voltei algumas vezes para suturas e curativos de ferimentos resultantes das aventuras de criança. Mas o que ficou mais marcado em minha memória foi quando o Dr João Letti parou o seu carro no meu lado e chamou-me: “Fernando, passaste ontem no vestibular. Vamos para o hospital operar”. Assisti no São Carlos a minha primeira cirurgia. Um dia após receber o resultado do vestibular assisti Letti e Ferrary operando uma vesícula. Não imaginava que anos mais tarde eu faria pontes de safena no João Letti. E que seu filho Estevan trabalharia comigo.


Farroupilha ficou em meu sangue e, junto com a cidade, o hospital onde nasci e entrei pela primeira vez em uma sala de cirurgia. Depois foram dezenas de salas de cirurgias em vários países. Mas a maior emoção, sem dúvidas, foi aquela primeira vez no Hospital São Carlos com o Letti e o Ferrary.


Os 90 anos de história do São Carlos mostram uma perfeita conexão com a sociedade. Era um hospital filantrópico vinculado à paróquia de Farroupilha e à Diocese de Caxias do Sul. Meu avô, Ludovico Merlin, foi do conselho do Hospital na sua construção. Com um grupo de empresários e profissionais liberais trabalhou durante anos para construí-lo e mantê-lo vivo.


O hospital era o grande refúgio dos pacientes da região. Muitas vidas foram salvas. Milhares de pacientes atendidos. Mas os tempos tornaram-se difíceis na área da saúde. Dom Paulo Moretto, bispo de Caxias do Sul, consultou-me sobre a intenção de transferir os hospitais da diocese para as Prefeituras. Pelo que lembro eram oito. São Carlos incluído nesta lista. A alternativa seria fechar alguns destes hospitais. Não havia recurso para mantê-los. Fui honesto com Dom Paulo. Os tempos eram difíceis, muitos hospitais filantrópicos estavam encerrando suas atividades em municípios do Rio Grande. A transferência foi realizada, em alguns casos com sucesso, outros nem tanto. O São Carlos atravessou momentos de muita apreensão mas consolidou-se como o grande hospital da região, orgulho para todos nós.


Para mim, o São Carlos marcou o início da minha vida como cirurgião. Talvez tenha nascido naquela cirurgia, em 1965, minha vocação de cirurgião.
Portanto, devo duas vezes minha vida ao São Carlos. Nasci no São Carlos e nele descobri a cirurgia como profissão.