Cruzar a Cordilheira dos Andes é, literalmente, uma aventura
Três motoristas da Transportadora Silvestrin, braço da Silvestrin Frutas, de Farroupilha, comentam como é o dia a dia na estrada e as dificuldades enfrentadas
Silvestre Santos
silvestre@ofarroupilha.com.br
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Frio, muito frio, com temperaturas vários graus abaixo de zero, é só uma das dificuldades enfrentadas por quem, na boleia de um caminhão, aceita desafiar a cinematográfica “Los Caracoles”, principal ligação rodoviária entre Los Andes, no Chile, e Mendoza, na Argentina, estrada que serpenteia a inóspita Cordilheira dos Andes.
São cerca de 360 quilômetros de paisagens lindas, na maior parte do tempo esbranquiçada pela neve incessante. Porém, o trecho conhecido como Los Caracoles tem apenas 3,5 quilômetros e fica no lado chileno, possui 29 curvas bem fechadas e tem um declive, ou aclive, de 700 metros em relação ao nível do mar.
A estrada é percorrida com frequência pelos motoristas da Transportadora Silvestrin, que vão ao Chile buscar cargas que, em Farroupilha, compõem um mix com o qual a Silvestrin Frutas abastece grande parte das redes supermercadistas do Brasil. Para marcar o Dia do Motorista, neste 25 de Julho, o Jornal O Farroupilha conversou com três destes profissionais que comentam sobre o dia a dia nas estradas e, claro, sobre a travessia dos Andes.
Confira, a seguir, o que disseram o catarinense Elozir Endres, e os gaúchos Marília Barella e Camael Müller Guterres, ambos motoristas de carretas frigorificadas, dispositivo necessário para preservação das frutas já que se trata de carga altamente perecível.
O CATARINENSE
Nome: Elozir Andres
Idade: 49 anos
Natural de: São Joaquim, Santa Catarina
Motorista há quanto tempo: 22 anos
Na Transportadora Silvestrin: Há oito anos
Roteiros:
“Eu viajo mais para os países do Mercosul, Chile, Argentina e Uruguai. Para o Chile, se tudo correr bem e sem problemas climáticos, dá uns 15 dias entre ida e volta. Em 2022 peguei um perrengue danado, com uma nevasca gigante que atingiu a região. Eu mesmo fui tema de reportagem em várias emissoras de televisão aqui do Sul do Brasil. Nesta ocasião ficamos parados cinco dias, até liberarem as estradas, mas já cheguei a ficar trancado uns 20 dias, porque não havia condições de trafegabilidade”.
Estrutura:
“Para estas situações, a gente viaja preparado, com estoque de água e comida, roupas para enfrentar o frio. A empresa nos dá um caminhão bem equipado, com geladeira abastecida e com as condições necessárias para encarar uns quantos dias parados. Os Andes são muito imprevisíveis, por isso é preciso ter uma boa estrutura”.
Ser motorista é bom:
“Eu gosto. Não trocaria de profissão, nem penso nisso. Principalmente depois que parei de rodar no Brasil e comecei a fazer (roteiros) o Mercosul. Ainda viajo pelo Brasil, mas antes de vir para cá (Silvestrin) eu rodava só dentro do país. Depois disso, passei a conhecer outros países, e isso é muito bom!”.
Família:
“Sou separado, tenho dois filhos, de 26 e 22 anos. São dois casamentos, os dois moram com as mães, e a infância deles foi com elas. A infância deles, foi totalmente com as mães. Isso pode até ser ruim para mim, que não acompanhei o crescimento, a educação. Mas não vem da minha profissão, é coisa do dia a dia, felizmente eles se adaptaram, e está tudo andando bem.
Onde é melhor dirigir: “Sobre os motoristas do Brasil e do Mercosul, fazendo uma comparação, dirigir lá fora é bem melhor, até certo ponto. Nem é porque respeitam mais as leis de trânsito, porque a legislação existe e observa quem quiser. Fora do Brasil é mais ou menos a mesma coisa, nem todos respeitam as leis, mas há bem mais consideração entre os profissionais do volante”.
Elozir, motorista há 22 anos
UMA MULHER NO GELO
Nome: Marília Barela
Idade: 34 anos
Natural de: Passo Fundo, Rio Grande do Sul
Motorista há quanto tempo: Quatro anos
Na Transportadora Silvestrin: Há quatro meses
Roteiros:
“Dirijo dentro do Brasil, mas faço (viagens) por ouros países, especialmente os do Mercosul. Na verdade, como estou há pouco tempo na empresa, estou viajando apenas para o Chile. É um trecho complicado e interessante. Antes das neves, a gente demorava 15, as vezes 18 dias. Agora está demorando um pouco mais porque, às vezes, a estrada fecha por causa das nevascas. Ainda não tinha visto a neve, conheci depois que comecei a trabalhar aqui na (Transportadora) Silvestrin, trazendo frutas do Chile”.
Os perrengues:
“Como comecei não faz muito tempo a dirigir para lá (Chile), ainda não enfrentei nenhuma dificuldade causada pela neve. Felizmente nestes meus quatro anos de estradas, também não me envolvi em nenhum acidente”.
Lado bom da estrada:
“Tenho, para mim, que a estrada te apresenta muita gente boa. Claro, tem muitas pessoas ruins, mas a maioria é de gente boa. Já enfrentei alguns problemas mecânicos, já me perdi no trecho e não me achava, e só achei pessoas boas para me orientar e ajudar a solucionar meus problemas”.
O preconceito existe:
“Tem sim, tem bastante preconceito ainda pelo fato de ser mulher no volante. Qualquer coisa que acontece, por menor que seja, já vem o ‘tinha que ser uma mulher’, ou ‘ah, é uma mulher, não vai conseguir manobrar’… E geralmente isso é mais comum entre os motoristas de transporte, de caminhão, ao contrário do que muita gente pensa que isso é mais comum vindo de pessoas que estão em carros de passeio”.
A estrutura:
“Quando a gente está na estrada, não tem jeito, tudo tem que ser na volta do caminhão. A gente dorme no caminhão, que tem uma boa estrutura e é bem confortável, e se alimenta, também, usando o que o caminhão oferece”.
O bom das viagens:
“O lado positivo, mesmo distante da família, é que a gente pode conhecer pessoas, lugares diferentes, novas culturas, faz muitas amizades. Já dá até para arranhar o portunhol. ‘Mui poquito”, porque a maioria das palavras ainda não compreendo”.
E a família: “O mais complicado, às vezes, é a distância dos familiares. Sou separada, mas tenho um filho de 12 anos que, quando viajo, fica com minha mãe. Bate a saudade, claro. Toda noite é vídeo-chamada, ligação, mensagens… Nas viagens que são mais longas, daí é mais complicado. Mas faz parte!
Marília, nova na boleia
CHIMARRÃO NA BOLEIA
Nome: Camael Müller Guterres
Idade: 25 anos
Natural de: Alegrete, Rio Grande do Sul
Motorista há quanto tempo: Cinco anos
Na Transportadora Silvestrin: Há um ano
Roteiros:
“Bem misto. Vajo pelo Brasil, claro, mas a prioridade da empresa é o Mercosul, especialmente o Chile, onde vamos buscar frutas. Alguma coisa a gente faz (viaja) para o Mato Grosso, levando alguma mercadoria, para retornar com frutas. Já fui para o Uruguai, a Argentina e para o Chile também. Não conhecia muito para fora, mas já estive na Argentina, Uruguai e Paraguai”.
O poliglota e o chimarrão:
“Não, ainda não falo espanhol. Dou uma arranhada, mas é preciso treinar bem mais. O que salva é que na boleia o que não pode faltar é um bom chimarrão, afinal, é uma maneira de fazer amizades. Sem contar uma boa música, principalmente a nativista, e sempre que dá a gente dá um jeito de assar uma pecuária (churrasco).
Família:
“Sou natural do Alegrete, casado, mas ainda não tenho filhos. Na realidade moramos em Santa Maria há, praticamente, um ano. Mudamos para lá para ela poder estudar. Então ela fica lá e eu vou para o trecho (estradas).
Água do mate congelada:
“O mais difícil é encarar a neve. A gente passa bastante frio. A água do mate chega a demorar uma hora e meia, as vezes duas horas, para esquentar. Para lavar o rosto, a água que tem no lado da carreta não sai, está congelada. Por outro lado, tem o que de bom acontece, quase todos os dias, que é ajudar um ao outro… Por exemplo, para o chimarrão, geralmente levo quase dois quilos de erva. Mas se faltar, tu vai tomar teu chimarrão do mesmo jeito, porque sempre tem alguém para te alcançar uma erva. E não te dão apenas uma cevada (suficiente para uma cuia de chimarrão), mas para uns quantos dias. E a gente retribui, claro.
A profissão: “Não me arrependo jamais da profissão que escolhi. Meu avô foi caminhoneiro, meu pai (Éder Romário Guterres) é caminhoneiro e trabalha aqui na firma (Silvestrin Frutas), comigo. Ele pouco tempo antes de mim e acabou me motivando a vir para cá também. Quando ele me disse como funcionava aqui, esquema de folgas para visitar a família, o que me interessa muito, nem pensei duas vezes. Na real, decidi seguir a profissão por influência dele. Na família tenho mais dois primos que são caminhoneiros, um irmão do meu pai também foi da estrada, mas como motorista de (ônibus de) turismo.
Camael, chimarrão e boa música