Pedro Ortaça: a missão de cantar as Missões, patrono dos Festejos Farroupilhas de 2024

Um dos “Troncos Missioneiros” relembra trajetória ao lado de nomes como Jayme Caetano Braun, Noel Guarani e Cenair Maicá

Douglas Carvalho/Ascom Sedac
silvestre@ofarroupilha.com.br

81 anos, o missioneiro Pedro Ortaça mantém acesa na memória a fraternidade que compartilhou, por muitos anos, com um trio de amigos: Jayme Caetano Braun, Noel Guarani e Cenair Maicá. Juntos, eles entraram para a história da cultura gaúcha como os quatro “Troncos Missioneiros”. Em 2024, Ortaça foi escolhido como o patrono dos Festejos Farroupilhas que, neste ano, têm como tema o Centenário de Jayme. O cantor, compositor e violonista Pedro Ortaça nasceu em 29 de junho de 1942, na localidade de Pontão de Santa Maria, município de São Luiz Gonzaga, um dos Sete Povos das Missões. Ao longo de sua trajetória, deu início, junto com os amigos, a um movimento voltado a cantar a história, costumes e realidade do povo missioneiro.

A escolha para ser patrono dos Festejos Farroupilhas – oficializada em fevereiro, pela comissão estadual responsável pela iniciativa – soma-se a outros reconhecimentos já recebidos pelo artista. Ele já foi eleito personalidade do século em São Luiz Gonzaga, recebeu o Prêmio Vitor Mateus Teixeira, entregue pela Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, e é Mestre das Culturas Populares Brasileiras, pelo Prêmio Humberto Maracanã, do Ministério da Cultura. Seu trabalho é de um cancioneiro que conta com mais de 120 músicas de sua autoria, consagrando-se como um dos principais baluartes da cultura gaúcha.

Nesta entrevista, Pedro Ortaça celebra sua escolha para o patronato, relembra sua infância e suas amizades, e fala sobre a importância de cantar a terra onde nasceu.

– Como o senhor recebeu a escolha para ser patrono dos Festejos Farroupilhas?

Muito importante, eu fiquei muito contente, faceiro, e aceitei esse convite, sabendo da importância da Semana Farroupilha para o estado do Rio Grande do Sul e aqueles que se orgulham de ter nascido gaúcho.

– Na sua opinião, qual a importância dos Festejos Farroupilhas?

A Semana Farroupilha é relevante para recordar a história do Rio Grande e sua gente. E sabendo que o Sul do Brasil também é empenhado nessas comemorações, a gente fica contente por saber que aqueles que não são gaúchos e que são gaúchos de alma e sentimento estão conosco.

– O seu avô era gaiteiro. Os seus pais também tocavam instrumentos e frequentavam a Bailanta do Tibúrcio, que te despertava grande interesse. Pode nos contar como foi a sua infância e como o senhor começou a ter contato com a música?

O meu avô Quintino Martins dos Santos tocava muita cordeona de oito baixos. Decerto daí que vem a veia de arte no sangue dos seus filhos, como os netos e bisnetos do meu avô estão por aí tocando. Muitos tocavam, e eu, graças a Deus, herdei um grande amor pela terra e pela história da nossa terra, que é as Missões e o Rio Grande do Sul. E a minha mãe e o meu pai também tocavam. A Bailanta do Tibúrcio era uma reunião de vizinhos que existia lá no Pontão (localidade de Pontão de Santa Maria, em São Luiz Gonzaga, onde Ortaça nasceu), que se reuniam, lá de quando em quando, e faziam o baile. O Tibúrcio era o dono da festa, dos convites, e os convidados iam todos pra lá, pra festejar, comer e bailar até clarear o dia.

– O senhor é um dos quatro “Tronco Missioneiros”, junto com Noel Guarani, Cenair Maicá e Jayme Caetano Braun. Como o senhor conheceu Noel, Cenair e Jayme?

Nas minhas andanças por aí, pelo Rio Grande, é que conheci o Noel, o Jayme e o Cenair. Nos reunimos e começamos a dizer versos, poesias e cantar desse nosso jeitão missioneiro. E aí que nasceu a música, a cultura e o cancioneiro das Missões do Rio Grande do Sul, porque nós quatro temos a mesma linha na cantiga, que é cantar denunciando, cantar dizendo os direitos do cidadão, cantar flores também, cantar a mulher, cantar o cavalo, cantar a história das Missões e do Rio Grande do Sul.

– Vocês introduziram na cultura musical gaúcha uma nova vertente, valorizando as raízes e a realidade social dos povos missioneiros. O que os motivou a trazer esse novo olhar para as canções?

Porque na época que nós éramos crianças só se ouvia, nas Missões, as rádios de São Paulo e do Rio de Janeiro. E lá era o sertanejo, sertanejo que era a música caipira, e do Nordeste, música como Luiz Gonzaga e vários outros que cantavam a seresta, a raiz da sua terra e a história daquela gente do restante do Brasil. E aqui não tínhamos uma cantiga que defendesse o direito do cidadão e que contasse um pouco da história do Rio Grande, onde as Missões são o ponto principal, onde começou o Rio Grande, a história do povo missioneiro e de sua gente que, infelizmente, foram destruídos e dizimados pelo estrangeiro. Estão aí ainda as ruínas dos Sete Povos, que eram 30, clamando que o povo saiba de onde vem e para onde vai. E foi isso que nós fizemos, cantar e dizer que o Rio Grande nasceu nas Missões e vai para as futuras gerações com sua história, embora triste, mas alegre ao mesmo tempo, e sua cultura.

– O disco Troncos Missioneiros, de 1988, é considerado um marco na construção da música missioneira. Pode contar como foi a produção desse disco?

Troncos Missioneiros, o disco que nós quatro, há muito tempo, cantávamos. Cantávamos na mesma linha, que era a história do povo missioneiro. Fomos convidados pelo Alex (Honenberger, produtor) para gravar esse disco, embora já tivesse outras gravadoras que queriam fazer a mesma coisa, como os Troncos Missioneiros, registrar em disco, em vinil, essa cantiga nossa. E assim aconteceu, e registrou no disco, porque já era registrado na história do cancioneiro dessa terra, Troncos Missioneiros.

– Em 2024, o senhor é o patrono, e o Centenário de Jayme é o tema dos Festejos Farroupilhas. O que o senhor imagina que seu amigo Jayme diria sobre esta homenagem feita a vocês?

O Jayme ficaria contente com o convite, porque o Jayme sabia muito e, assim como ele exaltava no seu pensamento e nos seus versos o Rio Grande, a história, ele também criticava alguém que não sabia das coisas e queria opinar. E assim era o Jayme, porque convivi mais de 30 anos com o Jayme, e tinha e tenho orgulho de ter sido amigo do Jayme, e ele meu amigo. E eu admirava demais esse payador maior da América Latina.

– O escritor Liev Tolstói disse que “se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia”. O senhor tem dedicado toda vida a pintar a aldeia gaúcha e principalmente a missioneira, por meio de canções. O que o povo missioneiro tem de universal e o que ele tem de particular?

Tem a herança de seus ancestrais, que está por aí para ser vista até hoje pelo olhar vivo e inteligente do ser humano. Foi isso que nos tornou membro do Rio Grande do Sul, alegre e feliz por ter nascido nessa terra e ter orgulho e amor por esta querência. “Venho de longe no tempo, muito embora os tempos novos / Sou cria dos Sete Povos, sou índio, branco e mestiço / E talvez seja por isso que quando a noite se alonga / Sou urutau, araponga, joão-de-barro e siriema / No sangue feito poema de um bordonear de milonga”.

– Na canção “Companheira”, o senhor exalta a parceria de sua esposa e diz que ela é a “companheira que sonhei desde guri”. Qual a importância de Rose na sua trajetória pessoal e profissional?

A Rose, a minha esposa, é uma grande companheira, uma amiga, que muito nos ajudou na divulgação da cantiga missioneira. Ela sabia e sabe que a maior importância, e faço uma oração sempre, é continuar sendo missioneiro e continuar tendo um grande amor pela terra. “Companheira” é uma letra do Carlinhos Cardinal e música minha, que eu gravei junto com a gurizada. Então, nós estamos cada vez mais alegres, por poder cantar a mulher do Rio Grande, a querida companheira.

– Os seus filhos, Gabriel, Alberto e Marianita, não caíram longe do pé e valorizam muito o seu legado. Como o senhor vê o amor que eles têm pela cultura missioneira?

O Alberto, o Gabriel e a Marianita já trouxeram no sangue essa herança missioneira. Crescendo, se criando, andando e vendo ao seu redor os valores do Rio Grande, que cantam com amor, carinho, fé e esperança em dias melhores. Eles aprenderam que o Rio Grande tinha gente, e tem gente cada vez mais, que também pode amar a sua terra, como nós. E eles conheceram o Jayme Caetano Braun, grande poeta, que até escreveu junto pra gurizada ensinando a fazer verso, o Noel Guarani, que vinha já muito doente aqui em casa, apesar de que eu conheci o Noel muitos anos atrás, muitas andanças fizemos juntos, e o Cenair também, aquele querido amigo. E eles tiveram o orgulho, a satisfação e a alegria de conhecer e saber que eles eram os cantadores desta terra.

– As lutas e a sabedoria dos guaranis sempre lhe inspiraram. Ailton Krenak, uma liderança indígena do Brasil, diz que o futuro é ancestral. E o senhor, na música “Timbre de galo”, canta sobre a importância de compreender que o passado é a base de tudo. O caminho para um futuro melhor passa por valorizar o passado?

Dizem que para se fazer uma projeção para o futuro, com amor na presença, tem que ter passado. E esse passado foram os índios guaranis, que estavam na mata antes de chegarem os jesuítas, e daí os jesuítas conseguiram reunir os guaranis e criaram essa potência aqui, quando havia justiça, amor, carinho e muito trabalho. E está aí o exemplo nessas ruínas, daquele povo, 400 anos atrás, do que foi feito aqui, e principalmente o amor e a irmandade que tinham um pelo outro, que era o que mais inspirava a humanidade, e não conseguiram seguir no futuro e chegar no futuro, porque o destruíram. Eles tinham muito amor e carinho um pelo outro.

– Quando o senhor pensa sobre a sua trajetória, o que mais lhe dá orgulho de ter feito?

O que dá mais orgulho de ter cantado a sua terra é exatamente esse amor pelas nossas raízes do Rio Grande e do Brasil. Eu me sinto muito feliz onde cheguei, onde passei e onde eu ando, com o carinho que recebo do povo brasileiro e também da Argentina, do Paraguai e do Uruguai, onde eu já estive muitas vezes. Esse é o amor. E vejo por aí, onde ando, outros na Argentina, no Paraguai e no Uruguai, cantando e tocando a sua terra, a sua gente e procurando cada vez fazer melhor, porque o mundo já reconhece essa cantiga.

Patronos e patronesses dos Festejos Farroupilhas (*)

  • 2005: Luiz Alberto de Menezes
  • 2006: João Carlos D’Avila Paixão Cortes
  • 2007: Antonio Augusto Fagundes
  • 2008: Wilmar Winck de Souza
  • 2009: Telmo de Lima Freitas
  • 2010: Rodi Pedro Borghetti
  • 2011: Alcy José de Vargas Cheuiche
  • 2012: Nilza Lessa
  • 2013: Nésio Correa – Gildinho dos Monarcas
  • 2014: Benjamim Feltrim Netto
  • 2015: Padre Amadeu Gomes Canellas
  • 2016: Zeno Dias Chaves
  • 2017: Elma Sant’Anna
  • 2018: Renato Borghetti
  • 2019: Cesar Oliveira
  • 2020: Alessandra Motta
  • 2021: Liliana Cardoso
  • 2022: Adair de Freitas
  • 2023: Maria Luiza Benitez
  • (*) As escolhas começaram em 2005